RESSUREIÇÃO?

Nascemos em um universo hostil. Vivemos com a noção de perigo. Cedo descobrimos nossa mortalidade. De repente, damos conta do pavor de nadarmos num oceano sem porto. Chamamos de angústia esse medo, somado ao cansaço de espernear contra a maré.


Não há como fugir. Nosso medo existencial faz nascer a angústia. E com ela vem o choro que não desentala a garganta; com ela vem a depressão que não entristece totalmente. Nossa angústia lateja feito uma leve dor de dente.


Ora, ninguém consegue domesticar a vida. Não há ungüento para o sofrimento de existir que nos persegue desde quando nos reconhecemos e nos questionamos. Carregamos apenas uma certeza: peregrinamos debaixo da ameaça da morte.


Por isso, não se erradica a angústia, não há cura para sua peçonha. Como disse Sponville: “Somos fracos no mundo, e mortais na vida. Expostos a todos os medos. Um corpo para as feridas, ou para as doenças, uma alma para as mágoas, e ambos prometidos à morte somente... Ficaríamos angustiados por menos”.


Para o angustiado não existe uma causa específica que se possa resistir, e por isso, não existem saídas. Viver consiste em caminhar consciente de que tudo terminará em tragédia - todos os dias sobram mais pratos na mesa. Todos os amores vestirão luto.


Pascal comparou o sentimento de angústia a um grande número de homens acorrentados: “Todos condenados à morte, sendo todos os dias uns deles degolados à vista dos outros. Aqueles que restam vêem sua própria condição naquela de seus semelhantes, e, olhando-se uns aos outros com dor e sem esperança, esperam sua vez”. Para ele, só resta para os humanos enlouquecerem na angústia ou “ se divertirem”, fugindo de sua realidade cruel.


A modernidade tecnológica, industrial e pragmática ensina: “Consumamos, porque amanhã morreremos”. Essa modernidade construiu seu paraíso na terra, os Estados Unidos, a nova Roma para onde todos os bárbaros querem emigrar. Os americanos possuem duas vezes mais carros per capita que o restante da humanidade; gastam mais energia com ar condicionado que toda a produção energética da China; e desembolsam doze bilhões de dólares com pares de tênis. Contudo, eles resolveram sua angústia e estariam mais felizes do que em 1954? Eles são o exemplo de civilização que outras nações devam cobiçar? Com certeza, não. Os muitos brinquedos não tiram a vontade de chorar.





Insistimos em descobrir a fonte da eterna juventude; tentamos postergar o dia fatídico em que nos desfaremos em pó. Desenvolvemos a medicina e cultuamos o corpo. O resultado é satisfatório. Acrescentamos mais dias de vida à humanidade.


A expectativa média de vida aumentou mais nos últimos quarenta anos do que nos 4.000 anos precedentes. Isso significa mais contentamento? A jornada de vida cresceu de 53 anos – incluindo os países mais miseráveis – em 1960 para 67 em 2005. Uma criança nascida hoje viverá em média 122 mil horas ou 5083 dias a mais do que alguém nascido há quatro décadas. E quais os desdobramentos destes avanços? Passamos mais tempo convivendo com nossa percepção da realidade e aumentamos o desespero: com longevidade também acumulamos angústia.


Continuamos com o mesmo soluço engasgado na alma; permanecemos impotentes com as mesmas fobias que nossos ancestrais. Com todo avanço terapêutico da psicologia e com todo progresso da espiritualidade, continuamos sem descobrir qualquer profilaxia para o perigo de viver; não existe pílula que anule o poder da angústia, e parece que se houvesse, seria pior.


Não restam muitas escolhas. Estamos condenados a aprender a viver.


O judeu itinerante, chamado Jesus de Nazaré, falou coisas agradáveis e bem antipáticas, sempre conspirando a favor da vida. Ele desejava que as pessoas se avaliassem num todo e diagnosticassem se conseguiam lidar com a angústia. Ele não ensinava como acabar com ela, apenas convocava seus ouvintes a se valerem dessa força existêncial negativa  a favor da felicidade. Para ele, não bastava um estado transitório de alegria (estar feliz), suas palavras provocavam coragem de encarar a realidade com grandeza existencial (as Bem Aventuranças do Sermão do Monte).


Ele propunha que viver consiste em somar pequenas decisões, juntando experiências boas e más, na construção do ser. Ele afirmava que se alcançava um significado mínimo para a vida com essa somatória de choros e risos, desejos e realizações, frustrações e sonhos. 


Ninguém deve exorcizar a angústia; ela motiva a busca por transcendência, como também agrega irmãos. Só numa dimensão nos igualamos indistintamente: todos sofremos, conscientes do tamanho de nossa dor.


A noite da alma dos monges medievais é a angústia dos filósofos iluministas. O grito que se ouviu no Calvário – Eli, Eli, lamá sabactini – ressoa pelos quatro cantos da terra; com ele, fomos cravados no madeiro. Ao seu lado percebemos o cuidado divino enquanto partilhamos a mesma solidão. 








Soli Deo Gloria.

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